Liberais e conservadores clássicos (de matriz britânica) podem ter fé religiosa transcendente ou não. Isso não os torna mais ou menos liberais ou conservadores clássicos. Podem ser ateus, agnósticos, budistas, taoístas ou cristãos. Islâmicos seria um pouco incompatível, pois o islamismo já nasce como um projeto político impositivo, autoritário, que embora não suprima a liberdade de comércio, milita contra diversas outras liberdades, incluindo a de expressão.
Religiões, laicas ou transcendentes, são formas de tranquilizações, são um ópio. Sim, Marx apenas repete uma ideia já concebida antes por diversos autores. Mas em sua abordagem da questão não trata de livrar os homens da dependência de ópio, mas de competir no mercado das mensagens de fé destinadas a oferecer tranquilizações.
O idealismo alemão, fé historicista da qual Marx é apenas um dos profetas, surge quando a demanda por ópio se torna aguda e, ao mesmo tempo, mal atendida pelas igrejas, notadamente pela Igreja Luterana, que se confundira com o estado, chegando na Suécia a ser mera extensão do mesmo.
Por que aguda? Ora, os homens nada prezam mais do que sua honra. No estanque sistema feudal vigente nos grotões da Europa, nascer pobre e morrer pobre não era desonroso, pois não havia alternativa. Mas, nas cidades efervescentes pela benfazeja irrigação de prosperidade proporcionada pelo vertiginoso aumento das trocas comerciais, a possibilidade de sucesso e fracasso passa a ser oferecida ao mais comum dos homens. A pobreza e a riqueza passam a ser resultado de escolhas individuais. A honra (“opinião dos outros sobre você” – Schopenhauer) está em jogo e ninguém aceita perdê-la. Errar nas escolhas passa a ser visto como desonroso.
Que melhor tranquilização, melhor ópio, para oferecer a esse povo do que o historicismo, que advogava “cientificamente” pela “razão” para conduzir a uma sociedade socialista, onde todos seriam iguais e não teriam que fazer escolhas e responder por elas?
Os velhos e tradicionais fornecedores de ópio, de tranquilizações, tinham o Evangelho a oferecer. Redigido num tempo e lugar de razoável difusão do comércio e possibilidade de ascensão social, o livro com vida e ideias de Jesus Cristo dizia que os pobres merecem a caridade, mas não são menos honrados por não terem alcançado a prosperidade pessoal. O Evangelho, adicionalmente, oferece a Salvação, a redenção além-túmulo, aos eleitos por Deus, poderosa forma de tranquilização para uma questão apavorante: a morte.
Estabelecido desde o século III, o cristianismo organizado era ainda um colosso, quase um monopólio como fornecedor de ópio, mas parte dele, grosso modo calvinista, não excluía a responsabilidade pessoal do crente, ao interpretar, a meu ver corretamente (como exponho em meu novo livro pela Record, “O Evangelho Segundo a Filosofia”), no próprio Evangelho, em especial na parábola dos talentos, um convite ao investimento produtivo e até mesmo ao emprego de capital a juros.
A parte calvinista e arminiana (derivação calvinista) da Europa e das Américas foi a que resistiu melhor à concorrência do historicismo. Coincidência ou não, é nos países em que é majoritária (Holanda, Grã-Bretanha, Estados Unidos) que a competição entre as fés cristãs e historicistas (além do marxismo, o positivismo e os diversos socialismos) pende decisivamente para as primeiras.
Quanto à versão idealista para o além-túmulo, além da clássica de Kant (quem for bonzinho e seguir os mandamentos de Kant terá a vida eterna), André Dumas nos apresenta outra vertente historicista:
“Hegel pelo conhecimento e Marx pela transformação social se situam ambos nessa celebração da morte individual em vista do surgimento de uma humanidade genérica. Há de se notar que aqui tudo se inverteu. Já não se trata, num plano religioso ou mítico, de conciliar os antepassados, mas, num plano profano e histórico, de constituir os parteiros de uma humanidade vindoura.”
Na Grã-Bretanha, o evangelismo, a partir sobretudo do calvinismo, por Hannah Moore e William Wilberforce, reforça o dogma cristão da caridade e inaugura a versão conservadora do empoderamento, focando na educação formal dos pobres para que possam se portar honradamente e estar aptos a competir em melhores condições à partida. Tal movimento pode ser visto como uma das gêneses do liberalismo social no campo econômico e muita influência exerceria também na América do Norte. Com tranquilizações dessa qualidade, brecaram a penetração da concorrência historicista anticristã.
No Brasil, o conservadorismo de matriz continental e o positivismo se unem para dar combate às primeiras tentativas, fortes já na década de 1920, trazidas por italianos, de pregação da fórmula de tranquilização marxista, fé radical no “novo homem”, emancipado da necessidade de responder por suas escolhas (na verdade, privado de suas escolhas, a realidade inescapável no socialismo realmente existente). O positivismo é também historicista, fortalece a fé no estado como guia, empreendedor e controlador da economia (pense nas estatais de Geisel), e, tal como os socialistas, classifica o competidor cristão como velha superstição, coisa de ignorantes do novo redentor: a razão.
Evidentemente, quando há três grandes competidores, dois deles podem se unir contra o outro, como vimos em 1964 (positivistas + católicos tradicionais). Derrotados ali, os marxistas enxergam a fraqueza de lideranças no campo cristão para tomar o comando dos velhos centros de distribuição de tranquilizações (ópio). Surgem então a Teologia da Libertação e a Teologia da Missão Integral; a primeira tomando comando do “sindicato dos bispos católicos”, a CNBB; a segundo, pasmem, parte do meio calvinista, começando pelo presbiterianismo.
Que o marxismo é incompatível com a fé no Evangelho não é preciso nem traduzir a mensagem evangélica para concluir. O próprio Marx, combatendo seu concorrente mais direto no mercado de tranquilizações, o fizera ao declarar: “A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real”. Felicidade, tranquilização, ópio. Meros rótulos do mesmo produto ofertado.
Obviamente, a Teologia da Libertação é anticristã. O Vaticano assim o declarou, deixando aos marxistas infiltrados na CNBB a opção preferencial pelo disfarce, no abraço a “causas” outras, notadamente ao Partido dos Trabalhadores – PT, surgido dos sindicatos e das comunidades eclesiais de base, nome local e institucional de cada núcleo da Teologia da Libertação. Se o PT abriga marxistas e não marxistas, a maior parte de seus marxistas se declarava cristã em seus primórdios ou segue se declarando, como Frei Betto.
Quanto à Teologia da Missão Integral, é anticristã e adicionalmente anticalvinista. Seu foco nas denominações protestantes tradicionais foi bem recebida por alguns pregadores calvinistas como forma de penetrar nas novas áreas de expansão urbana, tomadas pelos pentecostais e neopentecostais (majoritariamente arminianos). Ocorreu com eles, porém, fenômeno análogo ao apontado por Luiz Felipe Pondé em relação à Teologia da Libertação em toda América Latina: “A igreja católica de esquerda fez a opção pelos pobres, mas os pobres fizeram a opção pelo neopentecostalismo”.
Liberais e conservadores podem ser cristãos ou não. Podem, se cristãos, ser católicos, luteranos, arminianos ou calvinistas. E o podem ser tranquilamente porque, como proposta política, não competem no mercado das tranquilizações. O liberalismo e o conservadorismo clássico não se propõem a redimir os homens de coisa alguma, de lhes prover felicidade, pois entendemos que isso é tarefa de cada indivíduo, com ou sem apoio de uma fé transcendente individual. E por não oferecermos tranquilizações, também não podemos querer oferecer lenitivos ou promessas diante da apavorante perspectiva da morte, senão se formos também cristãos e agindo neste caso apenas como cristãos.
Adicionalmente, como declarou o liberal Karl Popper, o cristianismo em suas vertentes tradicionais não é nosso inimigo, tendo atuado em geral a favor da construção da sociedade aberta e cosmopolita, esta que defendemos de seus verdadeiros inimigos: os idealistas socialistas revolucionários, muitos deles infiltrados numa fé incompatível com a deles.