Para Freud, a civilização se funda em larga medida na renúncia às pulsões instintivas. É a moral a interditar agressões individuais ao social. Para isso, a civilização reforça o sentimento de culpa, que nada mais é que a culpa objetiva diante da moral ou, se preferir chamar assim, a ameaça de desonra.
Para ele, há um superego pessoal, que podemos chamar simplesmente de ética, e um superego social, que podemos chamar de moral. Os movimentos da civilização nessa direção sempre podem comportar exageros. Para contrabalançar, surgem as proteções contra a agressão do social ao individual, o respeito legal à área de autonomia do indivíduo. Em termos filosóficos, se o indivíduo conquista um grau de independência e autossuficiência, convém à sociedade respeitar essa conquista.
O politicamente correto é uma agressão do social ao individual. Ele criou categorias de culpas imaginárias, como a culpa pelo racismo, a culpa por emitir CO², a culpa por fumar e assim prejudicar o sistema público de saúde, a culpa masculina por não dar o máximo de satisfação sexual e afetiva à parceira.
O cristianismo tinha suas culpas prediletas como a culpa pelo adultério ou pela blasfêmia ou ainda por não participar dos ritos religiosos sociais. As culpas do politicamente correto parecem mais lógicas que as culpas do cristianismo. Não o são, dá-se o contrário. A lógica das interdições do politicamente correto é obscura, pois não interdita nenhuma ameaça efetiva de agressão ao social pelo individual, exceto, deve-se reconhecer, no caso do racismo.
É discutível se o adultério agride o social, se a blasfêmia põe em risco a harmonia entre os homens, mas se tenha a consciência de que tais regras visavam romanos tardios e germânicos, que quase por instinto matavam em caso de adultério e consideravam a violência como remédio necessário à mínima ofensa verbal.
Às vezes, é preciso civilizar para evitar a violência. É preciso, efetivamente, interditar as agressões do individual ao social, que começam pela agressão do individual ao outro, como o roubo, o estupro, o homicídio. Para evitar a tirania e preservar a independência, com seu potencial criativo expresso na colaboração voluntária e na competição geradora de riquezas, é preciso também interditar as agressões do social ao individual. O estado, pelo excesso de regulamentação, e o politicamente correto, por marcar como agressão ao social a mera expressão da individualidade, passaram do ponto.
Nunca saberemos ao certo qual é esse ponto, o equilíbrio exato entre interditar a conduta individual em nome dos valores sociais e interditar a conduta da sociedade ou do estado em nome da autonomia do indivíduo. Há dois caminhos básicos: pautar-se pelos resultados, numa lógica utilitária: o bem ao maior número; ou derivarmos as normas de uma moral transcendente. No primeiro caso, há riscos totalitários e niilistas mais ou menos óbvios. No segundo, como nos lembra Karl Popper, temos que escolher o profeta. Jesus seria uma boa escolha? É possível, parece-me moderado na média de seus pensamentos, mas escolhê-lo leva a outro dilema: quem escolher como profeta do profeta, como regulamentador da moral cristã? Uma denominação cristã? Um cristão sem denominação? A consciência de cada um, acompanhada da leitura do Evangelho?
Talvez devamos escolher um terceiro caminho. Veja o leitor como um delírio meu, mas me acompanhe mesmo assim na exposição da proposta. Concluamos que a razão prática, a ciência, não pertence ao campo da moral, não se pode derivar moral da lei da gravidade ou da engenharia de um automóvel. Assim, a moral é assunto da razão pura, das correlações entre pensamentos culturais. Concluindo dessa forma, concordemos que a correlação das correlações, a causa primeira e a finalidade última, atende pelo nome de Deus ou Criação. Você pode atribuir essa última ao Acaso, fique à vontade, dá na mesma. A moral evidente de Deus é a existência. O mundo existe, é nossa única certeza. Logo existe o indivíduo e, salvo o eremita absoluto, existe a sociedade. Então a moral de Deus é a moral a favor da existência.
Tudo que o indivíduo faça contra a existência deve ser interditado pela moral, pela sociedade. Contra a existência dos homens ou da natureza? Bem, é preciso desfazer o mito, derivado de delirante soberba, segundo o qual o homem se opõe à natureza. Todo ser vivo modifica a natureza e a adapta a seus fins. O fim do homem é adaptar a natureza a seus fins. Se a moral determinar que os fins do homem só podem ser a favor da existência, naturalmente o homem irá utilizar os recursos da natureza para sua sobrevivência e prosperidade, para atacar o eterno problema da escassez. E o fará, como já o tem feito, empregando seus melhores recursos tecnológicos, sem destruir a natureza. Modificá-la a torna diferente, não põe em risco a existência da natureza, como acreditam alguns.
Por fim, resta interditar as agressões do social ao individual. Ora, uma moral transcendente, baseada na interdição de ações contrárias à existência, só pode ser negativa. Eis aí o princípio fundamental a preservar a independência sem esculhambar a civilização: a moral deve existir para tratar do negativo, nunca do positivo, pois o positivo seria impor ao indivíduo algo arbitrário, possivelmente contra seu interesse, e necessariamente injusto, pois a obrigação de fazer só faz sentido se prevista em contrato voluntário, livremente consentido.
A moral negativa é a favor da existência e da liberdade, valor observável em todas as formas da existência. Assim, o indivíduo não deve poder agredir o outro fisicamente, não deve poder impedir ações lícitas do outro, não deve poder atentar contra a vida, contra a propriedade, asilo da liberdade individual, contra o ordenamento necessário (do trânsito, por exemplo). Essas interdições correspondem a direitos negativos ao indivíduo: o direito de não ser morto, de não ser agredido, de não ser roubado, de não ter violada sua liberdade de fazer escolhas lícitas.
A moral transcendente a favor da existência precisa agora limitar o poder de agressão da sociedade e do estado ao indivíduo. Ela não pode admitir a interposição de direitos positivos de terceiros sem causa justa, ou seja, sem uma justificativa baseada no princípio primeiro: moral transcendente a favor da existência. Se o estado obriga o indivíduo a entregar grande parcela dos frutos de seu trabalho para o estado, e com esses frutos em forma de dinheiro paga aluguel e gorda pensão a desocupados militantes, qual o fundamento moral dessa apropriação? Garantir a existência do desocupado? No limite, quer garantir a eles direitos positivos que o pagador de impostos não tem ou só os tem porque ele mesmo paga por eles.
Não há justificativa moral para esses direitos positivos e é absolutamente imoral, contra a existência, como bem demonstrou a filósofa Any Rand, dar aos ineptos o que se nega aos aptos, e às custas destes. O risco moral é, ou deveria ser, evidente. Se há uma constante imoral na história humana é a propensão à pilhagem do inimigo. Os ineptos por opção, com o apoio do politicamente correto, têm se unido para exigir do estado que pilhe os aptos para fins de deleite dos primeiros. Isso não é caridade, não é amor ao próximo, e é contra a existência porque ensina que produzir não vale a pena, que direitos positivos serão impostos à custa da violação de direitos negativos, no caso o direito a não ser pilhado para atender o gozo alheio.
Ora, se produzir é errado, a produção definhará, e isso porá em risco a existência de todos. Quando governos socialistas, na África, na Ásia ou na América Latina, resolveram pilhar os bens de quem os produziu para o deleite dos governantes (dizendo que seria para o deleite de todos), a produção de bens entrou em colapso e todos, exceto os governantes, tiveram suas existências colocadas em risco. Morreu-se de fome na China, no Cambodja, na Etiópia.
Morre-se de fome ainda em países em que não se respeita os direitos negativos (não ser morto, não ser roubado, não ser estuprado), em nome de direitos positivos que só existem no papel ou atendem beneficiários escolhidos exclusivamente por critérios políticos.
Resta estabelecer se outras bandeiras morais do politicamente correto são compatíveis com a moral transcendente a favor da existência. O racismo é contra a existência, não há dúvida. O racismo é uma expressão de ressentimento e preconceito baseado em falsas premissas inaceitáveis. Qualquer ataque baseado em racismo, seja a judeus, indianos, congoleses ou ciganos, deve ser interditado, mas é preciso cuidar também de duas premissas: não invadir o terreno da liberdade de expressão, componente essencial à criatividade, à liberdade e à própria vigilância moral; e não estabelecer racismo na direção oposta, não se pode dar direito a um por supostamente pertencer a uma etnia vítima de racismo, retirando o direito de outro por supostamente pertencer a uma etnia não identificada até então como alvo de racismo.
Como Thomas Sowell constatou, em pesquisas quantitativas, tal atitude não chega a inverter o racismo, mas reforça a ideia de inferioridade de quem se quer privilegiar. Na prática, a intenção declarada resulta em seu contrário. Racialismo, o nome da ação do politicamente correto supostamente em prol das vítimas de racismo, provoca mais racismo, não deixa nenhum legado positivo, e é moralmente injustificável desde a origem.
Quanto aos homossexuais, observa-se fenômeno semelhante. Uma moral transcendente a favor da existência não deve interditar relações sexuais consentidas entre adultos. Não há argumento válido para essa interdição. A homossexualidade, por não possibilitar a reprodução, não seria contra a existência? Não, de forma nenhuma. Primeiro porque, evidentemente, a homossexualidade não milita contra a procriação, ela é uma forma abundante de praticar sexo, não impeditiva de sexo com fins reprodutivos. Mas digamos que um grande percentual de homens e mulheres resolva ser exclusivamente homossexuais ou lésbicas. Não há risco nenhum disso resultar na extinção da espécie humana em tempos de bilhões de habitantes e acesso amplo à reprodução assistida. A Grécia antiga não correu riscos demográficos, pelo contrário, expandiu-se em número de gregos, por seu culto à homossexualidade.
Jesus, cuja mensagem original foi escrita em grego, não diz uma palavra contra a homossexualidade. Sugere que não se separe um casal formado por um homem e por uma mulher, mas admite a hipótese de abrir mão de qualquer sexo (fazer-se eunuco), portanto a reprodução não é uma obrigação evangélica. Há prescrições contra a homossexualidade no Antigo Testamento, é verdade, mas Jesus não as endossa. Pode-se alegar que ele endossa a lei de Moisés, os Dez Mandamentos, mas é curioso que a palavra “castidade” tenha sido interpretada por boa parte dos cristãos, inclusive pela Inquisição, como uma interdição à penetração, que não ocorre necessariamente entre as lésbicas.
No tempo de Jesus, “castidade” estava ligada principalmente à virgindade feminina, assim pensavam os gregos e os romanos. No contexto do Antigo Testamento, bem como do Novo, além do Evangelho, é evidente a interdição geral e repetida à homossexualidade, notadamente a masculina. Mas as justificativas morais para essa interdição são insuficientes em nosso tempo, pois baseadas numa interdição geral à luxúria, ao gozo sexual fora do casamento.
Na época, a luxúria era vista como uma ofensa social dos ricos, por isso colocava em risco a harmonia social. A luxúria também poderia afetar a harmonia entre os casais, especialmente a luxúria heterossexual, pois levava a desvios, que por sua vez geravam filhos ilegítimos, um grande problema na legislação romana, válida para todo império neste ponto. No limite, a luxúria afetava a convivência social, suas instituições, e, muito antes de o cristianismo chegar à maioria das mentes e dos corações mediterrâneos, a filosofia greco-romana, bem como as leis, estabeleciam limites mais estritos à luxúria, mas poucos, muito poucos, à homossexualidade.
A luxúria afeta as sociedades atuais? Depende dos conceitos locais de honra. No Ocidente, afeta muito pouco. Nas legislações dos países ocidentais há mais distinção entre filhos “legítimos” e “ilegítimos” e a paternidade pode ser determinada cientificamente. Enfim, a homossexualidade não afronta a moral transcendente a favor da existência, e as bases cristãs de sua interdição são frágeis e não baseadas nos ensinamentos morais de Jesus Cristo. Daí ao politicamente correto querer punir toda e qualquer opinião sobre o tema como potencialmente homofóbica é dar tiro no pé, é usar os homossexuais para fins de marxismo cultural. É chamar por ódio onde não há razões maiores para ódio.
No Ocidente, a adesão a denominações cristãs é hoje absolutamente livre, voluntária. Se um padre ou pastor quer dizer que a prática homossexual desagrada a Deus, é sua interpretação. Alguém pode dizer que o beijo na boca transmite cáries e é feio, que colocar o dedo no nariz vai contra as regras de etiqueta, mas tais opiniões não podem ser interditadas, criminalizadas. É preciso interditar a violência física contra o homossexual por ele ser um indivíduo como qualquer outro, necessitado dessa proteção, não porque seja homossexual. Qualquer distinção opera contra quem é distinguido, por que é tão difícil aos seguidores do politicamente correto entender isso?
Aos líderes do politicamente correto não é difícil entender, é o que eles conscientemente desejam, anseiam pelo “nós” x “eles” que deságua no totalitarismo por eles desejado.
Sobre o ato de fumar, perseguido porque é feio, cheira mal e, principalmente, por onerar o sistema público de saúde. É questionável se deve haver um sistema estatal de saúde além do atendimento de emergência por trauma ou infarto, mas admitamos por um instante tal sistema. O tabaco, invenção ameríndia, não predispõe o homem a comportamento antissocial. O tabaco, segundo pesquisas médicas, diminui a expectativa de vida por predispor a algumas doenças, como câncer de pulmão. Comer demais, também. Deixar de fazer exercícios, também. Não ter a alimentação mais balanceada possível, também.
Então vamos derivar toda moral, toda ética, de uma invenção recente da humanidade, e altamente questionável, chamada “sistema púbico de saúde”? Fica estabelecido que o estado determinará e fiscalizará a quantidade de horas e tipos de exercícios que cada indivíduo deve praticar, o que deve comer, cada mínimo ato que possa afetar a predisposição para doenças futuras? De preferência com uma tabela do Food and Drug Administration – FDA à mão, tabela que já foi desmentida no passado mais de uma vez pela ciência.
Eu entendo a objeção dos não fumantes a compartilhar espaços fechados com fumantes enquanto estes estão fumando. Ponto. O resto, incluindo as restrições à propaganda, é apenas agressão gratuita à liberdade de indivíduos fumantes, que não afetam negativamente a sociedade.
O politicamente correto quer que o social controle todo e qualquer ato individual, quer reduzir o indivíduo à peça da engrenagem. Por que o politicamente correto é assim? Porque os utópicos, diante dos fracassos práticos, vivem de reinventar a utopia. A melhor forma de combatê-los é derivar nossa moral da transcendência a favor da existência, o que pressupõe não haver um devir, pois a existência é, não virá a ser. Assim, a moral derivada da utopia é aleatória ou mal-intencionada.