8536 folhas. 208 despachos. 56 testemunhas, 62 depoimentos, 2 acareações. Mais de 80 horas de depoimentos transcritos. Mais de 390 documentos juntos (requerimentos, manifestações, ofícios, mídias, mandados, certidões). Esse é o tamanho da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) n° 194358, ajuizada pelo Diretório Nacional do PSDB e a Coligação Muda Brasil (PSDB/DEM/SD/PTB/PMN/PTC/PEN/PTdoB/PTN) para buscar a cassação da chapa eleita em 2014, formada por Dilma Rousseff e Michel Temer, por abuso do poder econômico e político na campanha eleitoral.
Como previsto nos últimos dias, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – uma aberração que só existe no Brasil – absolveu a chapa Dilma-Temer das acusações de uso de doações ilegais na campanha presidencial de 2014, mesmo havendo fartas provas, apresentadas pelo relator do caso, Herman Benjamin.
Votaram a favor da absolvição o atual presidente do TSE, Gilmar Mendes, além de Napoleão Nunes, Admar Gonzaga e Tarcísio Vieira; enquanto foram voto vencido, favorável à condenação da chapa, o relator Herman Benjamin, o vice-presidente Luiz Fux e Rosa Weber.
A absolvição da chapa Dilma-Temer deixa clara que as questões políticas estão acima das instituições e do “rule of law” no Brasil. Mesmo com as fartas provas favoráveis à cassação da chapa presentes no processo, as relações políticas de parte dos ministros falaram mais forte e Michel Temer segue no poder. O ILISP sumariza essas relações em cinco itens fundamentais para entender o resultado do julgamento do TSE.
1. Um dos ministros favoráveis à absolvição foi advogado da chapa Dilma-Temer
O advogado Admar Gonzaga se tornou ministro-substituto do TSE em 2013, indicado por Dilma Rousseff (e reconduzido ao mesmo cargo em 2015), após ser advogado da primeira campanha da chapa Dilma-Temer, em 2010, quando foi o responsável pela defesa da petista em longas sessões no tribunal.
Sua indicação ao TSE serviu para gerar pedidos de direitos de resposta para a chapa Dilma-Temer no rádio e TV na campanha de 2014, incluindo um contra a Revista Veja por ter divulgado, às vésperas da eleição, o conteúdo do depoimento à Polícia Federal do doleiro Alberto Youssef, segundo o qual Dilma e Lula sabiam de tudo no petrolão – depoimento que se mostrou cada vez mais verdadeiro com o avanço da Lava Jato.
Gonzaga também foi o advogado responsável por coordenar a criação do PSD, partido de Gilberto Kassab, que se tornou aliado do governo petista desde a aprovação de sua abertura pelo TSE em 2011.
Dessa forma, o ministro deveria se declarar impedido de julgar a chapa para a qual advogou no passado, mas não o fez, como declarou na época de sua indicação ao TSE: “Não vejo razão (para se declarar impedido em qualquer caso)”. O impedimento de Admar chegou a ser solicitado pelo vice-procurador-geral eleitoral, Nicolao Dino, mas foi indeferido pelo plenário do TSE.
Durante o julgamento, Admar Gonzaga chegou a afirmar que “não costuma conferir o saldo bancário” de sua conta para defender o desconhecimento dos candidatos sobre a origem do dinheiro que financia as suas campanhas. O ministro também afirmou desconhecer os 150 milhões de reais que o departamento de propinas da Odebrecht destinou à campanha de Dilma Rousseff e Michel Temer, e chegou ao cúmulo de afirmar que o TSE não pode julgar e condenar o caixa 2 na campanha da chapa, somente a propina lavada no Caixa 1.
“Não está em jogo aqui uma causa das eleições de 2010, que advoguei, fiz com todo o meu esforço, como fiz em outras campanhas, para outros partidos, e daqui quando sair, respeitada a quarentena, o farei. (…) Não reconheço a prática de abuso de poder em decorrência dos fatos em análise. (…) Não vislumbro a ocorrência de outros fatos que corroborem a destinação de fato abusivo.” (Admar Gonzaga, voto favorável à absolvição da chapa Dilma-Temer, 09 de junho de 2017).
2. Outro ministro favorável à absolvição da chapa foi delatado pela JBS
“Olha, a decisão contra o Zé Carlos estava pronta segunda-feira. Eu consegui reverter. Pedi para o ministro Napoleão interferir. Ele interferiu e vai me dizer alguma coisa nos próximos dias”.
Foi o que disse o executivo da JBS, Francisco Assis e Silva, em sua delação premiada. De acordo com Francisco, o então advogado da JBS, Willer Tomaz – preso por corromper o procurador Ângelo Goulart – lhe informou sobre o pedido feito a Napoleão Nunes para interferir em uma decisão contrária a José Carlos Grubisich, presidente da Eldorado Celulose, na Operação Greenfield. Napoleão Nunes, além de ministro do TSE, também é Ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Durante o julgamento da chapa Dilma-Temer, Napoleão Nunes afirmou que muitos políticos não sabem que os recursos de sua campanha são ilegais e se posicionou de forma contrária ao conhecimento das delações e provas da Odebrecht e dos publicitários João Santana e Monica Moura no julgamento.
Além de ser favorável à absolvição da chapa, Napoleão Nunes também foi voto vencido (a favor da absolvição) no julgamento que cassou o governador de Amazonas, José Melo, no mês passado. No mais, a indicação do sobrinho de Napoleão, Luciano Nunes Maia Freire, para o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) foi aprovada ontem (08) pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, controlada pelo governo.
“Em casos como esse, a Justiça Eleitoral deve manter postura de moderação de prudência, sob risco de aniquilar a vontade soberana do povo. (…) Se for aceito isso, abre um leque infinito de punições para todo mundo que foi eleito com essa poupança [propina]. (…) Uma coisa é punir as pessoas pelo crime, outra é privar quem ganhou a eleição de exercer o mandato.” (Napoleão Nunes, voto favorável à absolvição da chapa Dilma-Temer, 09 de junho de 2017).
3. Dois ministros favoráveis à absolvição foram indicados por Michel Temer e são professores do instituto fundado por Gilmar Mendes
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é composto foi três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), dois ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dois advogados indicados pelo presidente da República. Na atual composição, ocupam as vagas do STF: Gilmar Mendes (também presidente do TSE), Luiz Fux (vice-presidente do TSE) e Rosa Weber. As vagas do STJ são ocupadas por Napoleão Nunes e Herman Benjamin. E as vagas da advocacia são ocupadas por Admar Gonzaga e Tarcísio Vieira.
Com a saída do então ministro efetivo Henrique Neves no último dia 16 de abril após oito anos de mandato, Michel Temer indicou para o seu lugar um ministro-substituto, Admar Gonzaga, aquele que advogou para a chapa Dilma-Temer em 2010. O novo ministro foi nomeado pelo presidente com duas semanas de antecedência, no dia 30 de março. Questionado pela imprensa sobre o possível voto favorável à absolvição da chapa presidencial que o levou ao TSE, Admar respondeu que possui “compromisso com o país”, que “o direito tem que se adequar à realidade” e que o TSE deveria levar em consideração no julgamento a “circunstância política à época”.
Outro ministro indicado por Michel Temer e que também votou a favor da absolvição da chapa Dilma-Temer foi o advogado Tarcisio Vieira. Nomeado igualmente de forma antecipada à saída da então ministra efetiva, Luciana Lossio – Tarcísio foi nomeado no dia 20 de abril e Luciana saiu do TSE no dia 6 de maio – o novo ministro também defendeu durante o julgamento da chapa que as informações geradas pelas delações da Odebrecht e dos publicitários João Santana e Monica Moura fossem ignoradas, considerando-os “elementos estranhos à demanda inicial”.
Tanto Admar Gonzaga quanto Tarcisio Vieira são professores do IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público, instituição privada de ensino fundada pelo ministro do STF e presidente do TSE, Gilmar Mendes.
“Não houve qualquer confirmação categórica [de testemunhas] acerca da utilização de propina de contratos de empreiteiras vinculadas com a Petrobras na campanha de 2014. (…) Se o doador obteve recursos de formas ilícitas, essa ilicitude não se projeta sobre os donatários. (…) Entendo que essas irregularidades verificadas não configuram abuso de poder político e não caracterizam infração eleitoral.” (Tarcisio Vieira, voto favorável à absolvição da chapa Dilma-Temer, 09 de junho de 2017).
4. Foi uma manobra da defesa de Dilma Rousseff que permitiu que os dois novos ministros fossem indicados antes do julgamento da chapa
Com o fim do mandato da ministra Maria Thereza no TSE, no dia 31 de agosto de 2016, a ação de cassação da chapa Dilma-Temer foi redistribuída ao ministro Herman Benjamin, empossado corregedor-geral da Justiça Eleitoral.
De setembro de 2016 até o fim das instruções em março de 2017, o ministro coletou também dezenas de depoimentos de testemunhas, realizou acareações entre algumas das partes ouvidas, solicitou documentos para análise do caso e proferiu cerca de 200 despachos.
As ações foram incluídas na pauta de julgamentos do Plenário do TSE do dia 4 de abril de 2017, quando o ministro Herman Benjamin poderia apresentar seu relatório e iniciar o processo de julgamento da chapa. Entretanto, uma manobra da defesa de Dilma Rousseff, que solicitou a inclusão do depoimento do ex-ministro Guido Mantega e cinco dias para alegações finais da defesa, fez com que o julgamento fosse adiado para os dias 6, 7 e 8 de junho.
Dessa forma, o mandato dos ministros Henrique Neves e Luciana Lossio chegou ao fim, permitindo que Michel Temer indicasse Admar Gonzaga e Tarcisio Vieira como novos ministros.
5. A bipolaridade de Gilmar Mendes no caso: do ataque ao “sindicato de ladrões” à “moderação da sanha cassadora”
Em 2015, Gilmar Mendes foi decisivo para abrir a ação de cassação da chapa Dilma-Temer. A primeira relatora do caso, Maria Thereza, pediu o arquivamento do pedido feito pelo PSDB contra a chapa, em fevereiro de 2015, alegando falta de provas. Com o pedido de recurso do PSDB ao plenário, Gilmar Mendes defendeu e votou, em agosto de 2015, pela abertura do processo, “em busca da verdade dos fatos”, na medida em que os fatos até então conhecidos eram “constrangedores” e “de corar frade de pedra”.
Ao votar, Gilmar Mendes afirmou que “nem precisa grande raciocínio jurídico para concluir que a aludida conduta pode, em tese, qualificar-se como abuso do poder econômico, causa de pedir da ação de impugnação de mandato eletivo”. Disse ainda verificar que existe, no caso, “suporte de provas que justifica a instrução processual da ação de impugnação de mandato eletivo quanto ao suposto abuso do poder econômico decorrente do financiamento de campanha com dinheiro oriundo de corrupção/propina”. O ministro destacou ainda que “os delatores no processo da Lava-Jato têm confirmado o depoimento de Paulo Roberto da Costa no sentido de que parte do dinheiro ou era utilizada em campanha eleitoral ou para pagamento de propina”.
Na oportunidade, ficou famosa a sua frase:
“É grande a responsabilidade desse tribunal, pois não podemos permitir que o país se transforme em um sindicato de ladrões. (…) O TSE tem de evitar a continuidade de um projeto no qual ladrões de sindicato transformaram o país num sindicato de ladrões” (Gilmar Mendes, 13 de agosto de 2015, em seu voto a favor da abertura da ação contra a chapa Dilma-Temer)
Com o impeachment de Dilma Rousseff, a chegada de Michel Temer ao poder – com direito a convite para Gilmar Mendes jantar com o presidente – e o apoio do PSDB ao novo governo, tudo mudou. Gilmar passou a defender a necessidade de “moderar a sanha cassadora” e manter a “estabilidade do sistema eleitoral”, mesmo que para isso fosse necessário ignorar centenas de provas e testemunhos providos pela Odebrecht e pelos publicitários João Santana e Monica Moura. Para o representante do Ministério Público que pediu o impedimento de Admar Gonzaga, Gilmar destinou ira e críticas diversas vezes.
O maior embate durante o julgamento, entretanto, foi entre Gilmar Mendes e relator Herman Benjamin, favorável à cassação da chapa. De forma brilhante, Herman utilizou as posições anteriores de Gilmar Mendes para rebater a tentativa do próprio Gilmar Mendes de inutilizar as provas públicas e os testemunhos (Odebrecht, João Santana, Monica Moura) incluídos na ação da cassação após 2014.
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Gilmar Mendes foi decisivo não apenas na tese que restou vencedora – a que ignorou boa parte dos testemunhos e documentos que provam as ilegalidades – como a chapa Dilma-Temer foi absolvida por quatro ministros.
“Não se substitui um presidente da República a toda hora, ainda que se queira. (…) Estamos falando de recursos que saem da campanha e vão para outros lugares. (…) Não se quer defender fricote processualístico, mas estabilidade do mandato. Ninguém me venha dar lição de combate à corrupção! (…) Não é para cassar mandato! (…) Eu não tenho problema algum em mudar de opinião, e digo que estou mudando!” (Gilmar Mendes, voto favorável à absolvição da chapa Dilma-Temer, 09 de junho de 2017).
No fim, a maioria do TSE deixou claro: a lei vale para vereadores, prefeitos e até governadores, mas não vale para a chapa presidencial.