Trechos do livro “Contra o Aborto” (Editora Record), com lançamento em São Paulo nesta terça-feira (28) na Livraria da Vila, em Pinheiros, a partir das 19h00
Quando uma mulher decide abortar, independentemente das crenças subjetivas que a motivaram e dos direitos que amparam sua escolha, além de ela matar uma pessoa, esse ato é objetivamente imoral. Como perguntaram os filósofos Robert P. George e Patrick Lee: o que é morto em um aborto? Trata-se do status pessoal e moral dessa entidade morta o tema central que não se deve colocar de lado, inclusive e sobretudo pelos defensores do aborto, como denunciou Naomi Wolf duas décadas atrás. Defender o aborto é, acima de tudo, defender o direito de uma mulher matar uma pessoa objetivamente determinada e moralmente relevante desde o momento da concepção e não apenas, como articulam os retóricos, eliminar uma vida humana em potencial — ou como dizem: um “amontoado de células”.
Os seres humanos não são pessoas em virtude apenas de possuir certas qualidades e funções psicológicas, pelo contrário, são pessoas em virtude de sua própria realidade objetiva — e, no caso dos embriões, estão concretamente presentes como corpo e em um corpo. Ser pessoa é uma condição ontológica radical e não resultado de certo desenvolvimento neurobiológico. O conceito “ontológico” refere-se à sua realidade enquanto tal, em sim mesma, e que não depende de nossas percepções psicológicas para ser o que se é. Aspectos físicos, biológicos, psicológicos, econômicos e sociais só fazem sentido quando pensados à luz da ontologia: o terreno de todas as nossas reflexões é filosófico.
Pessoa ou ser humano?
Negarei, com isso, o artifício retórico que distingue “pessoa” de “ser humano” adotado pela estratégia dos defensores do direito de uma mulher decidir o que fazer com o próprio corpo, como se o corpo do embrião fosse só uma parte do organismo materno ou só uma entidade biológica sem qualquer valor ontológico próprio. Assumo, e me comprometo filosoficamente por isso, uma visão conhecida como personalismo ontológico a qual se distingue de um personalismo do tipo funcionalista.
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Em decorrência disso, o contraste conceitual para “pessoa em potencial”, “vida em potencial” do embrião seria “pessoa em ato” desde a concepção, mas prefiro adotar o termo pessoa objetivamente determinada que se autodesenvolve para a vida adulta. Ser pessoa é o ponto de partida, e não um ponto qualquer, fruto de arbítrio e artificialismos no desenvolvimento de um indivíduo.
Foi o filósofo John Locke um dos principais responsáveis por introduzir as categorias que dissociam o homem entre “pessoa” e “ser humano”, atribuindo caráter psicológico na medida em que esvazia o ontológico. Locke alegava que nem todos os seres humanos são pessoas. Ele define pessoa como “um ser pensante inteligente, que possui razão e reflexão e pode se considerar a mesma coisa pensante em diferentes momentos e lugares”. Para ele, ser humano só pode ser considerado pessoa quando desenvolver certas funções psicológicas.
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Hoje, com o avanço da neurociência, essas capacidades psicológicas — processos mentais — são concebidos como resultados de processos cerebrais. Segue-se que o embrião só será considerado pessoa quando desenvolver sistema nervoso central, que são processos biológicos complexos. Nesse sentido, a psicologia está subordinada à neurobiologia. Portanto, pessoa passa a ser um valor secundário cada vez mais marginalizado para a esfera da opinião sem relevância científica, mas algo dado na esfera dos interesses sociais.
Segundo essa linha de pensamento, pessoas são seres humanos possuidores de preocupação e competência moral, autonomia e liberdade. Nenhum recém-concebido, embrião, feto ou até recém-nascido possui tais capacidades por causa do desenvolvimento precoce de suas funções. Por isso devem ser vistos apenas como seres humanos e não como pessoas. Seres humanos protegidos por terceiros.
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Duas dificuldades
Há duas dificuldades com esse tipo de distinção. A primeira, e mais importante, está em limitar o status pessoal a certas qualidades psicológicas derivadas de funções neurológicas — sensação de dor, autoconsciência, autointeresse e racionalidade como subprodutos do cérebro. O segundo é que, nesse sentido, os seres humanos só serão considerados pessoas quando, durante o seu desenvolvimento biológico, alcançarem tais funções — assim como deixam de ser pessoas se acidentalmente perderem —, e a partir desse quadro não se pode garantir a relevância moral, pois não há relevância moral intrínseca, só extrínseca. Funções psicológicas são fatos empiricamente constatados pelo método adotado pelas ciências naturais dedicas ao estudo do cérebro.
Ademais, segundo a “lei de Hume”, como mostrei aqui, dos fatos empíricos não se pode extrair um dever. Pois não há valores morais nos fatos empíricos, dos quais fazem parte os fatos cerebrais e os psicológicos. Em síntese, não haveria fatos morais objetivamente relevantes, uma vez que todos os valores são subprodutos de percepções, desejos e interesses psicológicos.
Segundo essa perspectiva, sem as funções psicológicas ou cerebrais, os seres humanos são apenas membros da “espécie Homo sapiens”, entidades biológicas incapazes de autodominar suas relevâncias morais. Ao dispor de suas funções psicológicas, os seres humanos passam a ser considerados pessoas, porém não há garantias objetivas de serem moralmente relevantes em virtude do fato de essas funções serem apenas resultados de desenvolvimento biológico e não a própria realidade objetiva de valor intrínseco dado pela sua condição antropológica. A relevância moral estaria sempre associada ao conjunto de interesses compartilhados entre indivíduos. Por isso, autores defensores do aborto como Peter Singer, David Boonin, Mary Anne Warren, Jeff McMahan e Michael Tooley, Roderick T. Long, Judith J. Thomson e tantos outros afirmam ser o embrião biologicamente humano, mas não uma pessoa — que mereça atenção moral maior do que mereceriam os adultos biologicamente desenvolvidos. A questão é que mesmo adultos biologicamente desenvolvidos não têm garantias objetivas de seu reconhecimento moral.
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A primeira dificuldade baseia-se na ideia de que a condição antropológica do embrião ser reconhecido como alguém depende de um conjunto sofisticado de funções cerebrais e não o contrário. Segundo esse ponto de vista, as atividades cerebrais fornecem critérios necessários para fundamentar o status pessoal. A dificuldade aqui está em presumir que só pode ser considerado pessoa depois da emergência da consciência. E só pode ter relevância moral quem é pessoa. Consciência, neste contexto teórico, é um subproduto do cérebro.
Com efeito, a relevância moral não é atribuída a uma pessoa pelo fato de ser objetivamente pessoa, mas atribuída ao fato de ter desenvolvido consciência, que por sua vez só “existe” como resultado de sofisticados processos neurofisiológicos. Conforme a “lei de Hume”, fatos empíricos e suas relações não contêm valores morais. A consciência é resultado do desenvolvimento de processos neurobiológicos. O processo neurobiológico é um fato empírico. Portanto, mesmo depois de três meses não faz sentido chamar seres humanos de pessoas. Se antes eles não eram pessoas, em virtude do que seriam pessoas depois? Em virtude do autorreconhecimento de si como pessoa — que é a segunda dificuldade.
A segunda traz como fundamento a noção de que “unidade” e “identidade”, que capacitam alguém a ser reconhecido por si mesmo como pessoa, dependem, nesse contexto teórico, não da própria realidade pessoal objetiva, mas de expectativas de terceiros. Como o embrião não sente, pensa ou concebe a si mesmo, ele não pode ser incluído como pessoa membro da comunidade moral, pois não possui os requisitos psicológicos necessários para lutar por esse reconhecimento em sociedade. O reconhecimento psicológico de si é só uma condição suficiente, mas necessária para alguém ser pessoa. A pergunta a se fazer é: por que, de repente, sentir, pensar e conceber a si mesmo são capacidades responsáveis por forçar os outros a considerá-lo uma pessoa se o status pessoal e moral, em sua origem, já depende do reconhecimento social de terceiros cuja fonte original é o reconhecimento psicológico?
Nesse caso, uma pessoa só será mesmo pessoa quando for reconhecida pelos outros, que já são capazes de reconhecerem psicologicamente a si mesmos enquanto tais. O valor necessário de uma vida humana continua sendo extrínseco e artificial, ou um mero adicional provisório pelo fato de alguém ter conseguido evocar a si diante dos outros.
Para a manutenção da vida humana em sociedade, só o autorreconhecimento psicológico de si torna-se irrelevante e impotente para fundamento da comunidade moral. Porque de qualquer maneira o que importa é a capacidade de alguém, psicologicamente disposto, forçar os outros a reconhecê-lo como pessoa moralmente relevante. Se a relevância moral já não é uma propriedade objetiva intrínseca dada pelo status pessoal, ela poderá nunca vir a ser. O “poderá” aqui demonstra a fragilidade da situação, já que não há nada que dê garantias desse reconhecimento.
Se por razões sociais, materiais, raciais, sexuais ou políticas um grupo for impotente diante de outro grupo mais forte para autodeterminar sua relevância, provavelmente serão relevantes.
Mas podem não ser — quem garante?