Somos todos “fascistas”

As palavras, a exemplo das pessoas, mudam ao longo da vida.
Algumas mudam tanto que um dia não as reconhecemos mais.

“Vilão” era o sujeito que vivia na vila. Em certa época, tornaram-se populares os romances nos quais mocinhas ingênuas, camponesas, eram seduzidas por aproveitadores que, invariavelmente, viviam em vilas e cidades. E ai o vilão passou a ser visto como um vilão.

“Romance” já foi apenas um tipo de literatura. Mas os romances (como esses das mocinhas e vilões) eram tão açucarados e sentimentaloides que os relacionamentos amorosos também passaram a se chamar “romances”.

Fascista foi, até a primeira década deste século, um radical, totalitário, nacionalista – de preferência tudo isso junto. Fascistas eram Mussolini, Salazar, Franco, Plínio Salgado e os que os seguiam, curtiam e compartilhavam de suas ideias.

Hoje, é chamado de “fascista” todo aquele que se opõe a um projeto hegemônico (radical, totalitário) de poder.
“Fascista” é quem recusa que o estado venha lhe dizer como falar, do que rir, o que dizer.

“Fascista” é quem recusa a tutela do politicamente correto.
“Fascista” é quem desafina o coro dos contentes com o controle da mídia, dos costumes, do Judiciário, dos meios de produção, da educação, do pensamento.

É “fascista” o motorista que te dá uma fechada no trânsito, o árbitro que marca um pênalti contra o seu time, o professor que te pega colando, o ascensorista que te diz para esperar o próximo porque não cabe mais ninguém no elevador.

“Fascista” é todo aquele que te frustra, questiona, trola; todo aquele que diverge, desvia, contraria; todo aquele que te desconcerta.

O “fascista” tem que estudar história – não sabe reconhecer um golpe, não detecta uma fraude.
O “fascista” não compreende que o assalto pode ser a “reação justa”, dentro da lógica interna do processo, de um indivíduo “contaminado pelo capitalismo”.

 

Não percebe quando a bunda é sujeito e quando a bunda é objeto – muito menos que um magistrado, ao decidir contra os interesses que você defende, se torna um sujeito abjeto.

Somos todos “fascistas”: os que relativizamos a noção de que absolutamente tudo seja relativo; os que achamos que “democracia de alguns, para alguns, por alguns” não faz nenhum sentido. Os que sabemos que nem todo vilão é vilão, nem todo romance é digno de um romance e aquele chamado de “fascista” costuma ser tão somente o antagonista de um verdadeiro fascista.

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