Essa é uma história real que aconteceu com uma cliente minha.
Há 30 anos o pai dela comprou uma gleba de terras no interior do Pará e colocou o imóvel em nome dela, pensando em seu futuro. Foi convencido por um amigo de que seria um ótimo negócio, blá, blá, blá e tchum. Caiu no golpe.
Passados uns 5 anos da compra, ele descobriu que a matrícula do imóvel era obra de grilagem e que a gleba simplesmente não existia. O INCRA reconheceu a inexistência do imóvel e anulou a tal matrícula. Até aí, ele não tinha como ir atrás do grileiro e achava que o prejuízo seria só o do valor pago ao pilantra. Ledo engano.
Estamos no Brasil, o país onde, por trás de todo golpe de faca, terá sempre um estado querendo dar uma última girada no cabo.
Mesmo após o ato oficial do INCRA que reconheceu a inexistência do imóvel, a Receita Federal continuou cobrando ITR da minha cliente. Sim, a União continuou emitindo carnês de imposto sobre a propriedade territorial rural de um imóvel que ela mesma disse que nunca existiu.
Não vou me perder em detalhes processuais. Em resumo, o pai dela gastou com advogados, que recorreram e derrubaram todas as cobranças de ITR, menos a de um ano específico que por algum motivo passou desapercebida e o débito foi inscrito em dívida. O advogado então entrou com uma ação contra esse débito e, não me perguntem como (eu não seria capaz de explicar), o juiz de primeira instância manteve a cobrança. O detalhe sórdido foi que no momento da sentença o advogado estava adoentado (acabou falecendo pouco depois) e a sentença que reconhecia a exigibilidade de um imposto devido sobre a propriedade de um imóvel inexistente transitou em julgado, isto é, tornou-se definitiva.
Dando continuidade à cobrança, eis que chega um oficial de justiça no consultório da minha cliente, que é psicóloga, com três filhos e cuja única fonte de renda é a receita de suas consultas. Após tanto tempo o débito já passava de R$ 100 mil e o único patrimônio dela que garantiria a dívida era o próprio consultório, que foi então penhorado.
Esse foi o quadro insólito, no qual nem Kafka acreditaria, que minha cliente apresentou em nossa primeira reunião. Apesar das poucas chances de reversão, expliquei a ela que poderíamos apresentar embargos à execução e tentaríamos sustentar o absurdo da cobrança, com base no princípio da razoabilidade, porque o bom senso deve estar acima de tudo, blá, blá, blá.
Mas bom senso no Brasil, meus amigos? Lembrem-se, aqui só há espaço para a última girada no cabo da faca.
Resumo da ópera: ontem foi o julgamento de segunda instância dos meus embargos. Fiz a sustentação oral realmente comovido pelo caso dela. Acho que consegui até comover um pouco o desembargador relator que, antes de ler seu voto mantendo a cobrança, disse-me:
– Doutor, entendo perfeitamente a injustiça da situação, mas infelizmente não há nada o que possamos fazer.
Eis que, em alguns meses, talvez dias, o consultório da minha cliente – repito, sua única fonte de renda – irá a leilão para que o valor arrecadado seja repassado a esta União Federal podre, corrupta e canalha que nos extorque diariamente, sob o pretexto de que se liquide um débito de imposto cobrado pela propriedade de um imóvel que essa mesma União diz nunca ter existido.
Esse é o país em que vivemos.
O país em que assistimos a esse tipo de absurdo e, de mãos atadas, simplesmente não podemos fazer absolutamente nada.
O país em que o estado olha o cidadão que foi vítima de um golpe e, ao invés de socorrê-lo, ri da sua cara e rouba até seu instrumento de trabalho.
O país em que o estado, ao vê-lo caído, segura seu pescoço com carinho, enfia a faca em sua carne e sorri calmamente enquanto gira o cabo para te ver sangrar até a morte.