Imagine morar em um local onde a cultura ocidental foi banida (por Stalin), a liberdade foi eliminada em favor da centralização do poder e o estado se apropriou de todas as propriedades do país, decidindo no que e como você deve trabalhar. Essa era a União Soviética. Agora imagine essa situação na década de 1950, quando surgiu o rock’n’roll nos Estados Unidos: a não ser que você morasse perto da fronteira com um país não-socialista e tivesse um rádio, era impossível ouvir o gênero musical. E mesmo assim os fãs de rock cresciam ano a ano. Como isso era possível?
O rock’n’roll sempre foi o ritmo da juventude e muitas vezes da rebeldia (contra o estado, a favor de mais estado, contra o “sistema”, pela abolição do “sistema”, etc.). E isso não era diferente na União Europeia. Os stilyagi, um grupo de jovens soviéticos que adoravam música ocidental – principalmente jazz, boogie woogie e rock’n’roll – se especializavam em fazer gravações caseiras de vinis contrabandeados para o país. E como a gravação em vinil era um monopólio do estado – portanto, rara – a iniciativa privada dos stilyagi encontrou outra forma de difundir a música: por meio de chapas de raio-x conhecidas como bone music (“música dos ossos”).
Por meio de chapas de raio-x encontradas no lixo de hospitais, os stilyagi copiavam os discos contrabandeados para diversas chapas usando vitrolas adaptadas, cortavam-os em formato de disco usando alicates de manicure e usavam um cigarro para fazer o círculo central, permitindo que a “bone music” fosse tocada em qualquer vitrola. Esse processo pode ser visto no início do filme Stilyagi, de 2008:
Os discos de “bone music” tocavam apenas de um lado e possuíam baixa qualidade, mas como as chapas de raio-x eram abundantes, tais discos eram extremamente baratos, custando um rublo no mercado negro, contra cinco rublos dos discos oficiais. Não demorou muito para que uma rede de distribuidores de “bone music” – a roentgenizdat – surgisse no mercado negro, distribuindo milhões de gravações ocidentais, incluindo de rock’n’roll.
Obviamente que as autoridades soviéticas não gostaram muito da ideia. O então secretário-geral do partido comunista, Nikita Kruschev (1890-1971), classificou o rock como um estilo “decadente” que se opunha à música produzida na União Soviética, constituindo “uma ameaça à juventude porque incentivava práticas como alcoolismo, fascismo, violência e perversão sexual”. A distribuição dos discos foi tornada ilegal em 1958, com o principal roentgenizdat sendo fechado pelo estado em 1959 e o surgimento das “patrulhas de música” em 1960, criadas pelo Komsomol – a Liga de Jovens Comunistas Leninistas -, que perseguiam distribuidores e destruíam qualquer disco de “bone music” que encontravam pela frente.
Nessa época surgiu também a lista negra de grupos de rock banidos, formalmente chamada “A lista de grupos musicais estrangeiros e artistas cujo repertório contém composições ideológicas prejudiciais”. A lista chegou a incluir bandas como Black Sabbath (“apologia à violência e obscurantismo”), Pink Floyd (por “interferir com a política exterior da URSS no Afeganistão”, Talking Heads (por “divulgar o mito do perigo militar soviético”), Sex Pistols e B-52 (“apologia ao punk e à violência”, Kiss (“nacionalismo e apologia à violência”), Iron Maiden (“apologia à violência”), Judas Priest (“anti-comunismo e racismo”), AC/DC (“neofacismo e apologia à violência”), Ramones (“apologia ao punk”), Van Halen (“propaganda anti-soviética”) e até mesmo Tina Turner e Donna Summer (“erotismo e apologia ao sexo”). Nem a banda de pop Village People escapou da lista: sua “apologia à violência” não foi perdoada pelo regime soviético.
A medida, entretanto, não impediu que a música ocidental seguisse sendo divulgada na União Soviética. Seja por meio de turistas ou parentes ou amigos influentes – geralmente membros da KGB que podiam viajar para o exterior – a “música proibida” continuava sendo divulgada, e com o surgimento das fitas cassete em 1963, um novo mercado negro de cópias de fitas surgiu na URSS, baseado no magnitofon (gravador de fitas cassete), levando até mesmo a uma “Beatlemania” local e posteriormente à autorização para que os Beatles fossem divulgados (como “jovens ingleses vindos da classe operária”) pela gravadora estatal, a Melodyia, nos anos 1970.
O modelo de distribuição baseado no magnitofon era similar ao “bone music”: álbuns contrabandeados do exterior eram copiados para fitas, que eram posteriormente copiadas novamente e distribuídas, gerando novas cópias e novas distribuições. Curiosamente, os estúdios de gravação que permitiam a cópia inicial eram autorizados pelo governo a distribuir as músicas autorizadas pelo estado, mas como nenhum artista lucrava com esse sistema, os catálogos dos estúdios estavam cheios de rock “ocidental” considerado “ilegal”.
A divulgação contínua do rock’n’rock levou o governo soviético a uma relação contraditória com a música. De um lado, as autoridades chamavam o rock de “poluição ideológica anti-soviética”, chegando a banir bandas como o Kiss por representarem “música fascista”. Por outro lado, o governo tolerava e até mesmo promovia músicas consideradas “anti-imperialistas” e “de esquerda” tocadas por bandas como Beatles, Deep Purple, T-Rex, Slate, Sweet e Rolling Stones, sempre com músicas escolhidas a dedo pela gravadora estatal Melodyia e geralmente sem o nome das bandas, divulgadas somente como “grupo vocal-instrumental”. Bandas russas também começaram a tocar rock – ilegalmente – pelo país, ajudando a difundir o uso da língua inglesa.
A Liga de Jovens Comunistas, o braço jovem do Partido Socialista Soviético – aproveitou o crescimento do rock pelo país para abrir discotecas (“diskoteki“) em escolas e fábricas, que se tornaram muito populares durante as décadas de 1970 e 1980, e não eram muito diferentes de suas versões ocidentais, exceto por dois fatores: só tocavam músicas consideradas “não subversivas” pelo estado e havia uma aula com uma hora de duração sobre o socialismo antes da música começar.
Com a desculpa de “reforçar os valores comunistas”, essas discotecas se tornaram uma fonte de lucro rapidamente e forjaram a abordagem cínica de defesa do socialismo enquanto se beneficia do capitalismo que impera no país – e em outras partes do mundo, incluindo o Brasil, até hoje. Comenta-se que até mesmo o atual primeiro ministro russo, Dmitri Medvedev, tenha sido DJ de uma dessas discotecas.
Com a ascensão de Mikhail Gorbachev ao poder e o início da abertura soviética ao mundo, algumas bandas estrangeiras foram autorizadas a fazer shows na região, alimentando ainda mais o senso de liberdade e individualidade que cresciam naquele período, além de servir como meio para protestar como o cada vez mais falido regime soviético. Em 1984, o “Iron Maiden” (mesmo estando na lista de bandas proibidas) fez um tour histórico pelo bloco soviético, fazendo cinco shows na Polônia e outros na Hungria e Iugoslávia, numa experiência que foi documentada em “Iron Maiden: Behind the Iron Curtain”.
Dois anos depois, Billy Joel fez um tour pela Rússia soviética, incluindo shows em Moscou e São Petersburgo, que foi extremamente popular entre os jovens, mostrando definitivamente que não havia nada a temer na cultura ocidental. A turnê gerou o álbum “Kontsert: Live in Leningrad”, o primeiro álbum de rock gravado na Rússia, incluindo uma versão de “Born in the USA”. Com o sucesso, o governo de Gorbachev fez reformas pra legalizar o cenário musical de rock e pop underground soviéticos, incluindo shows patrocinados pela Prefeitura de Moscou e pela Komsomol, e permitiu um aumento de shows estrangeiros no país, como os do Pink Floyd (1989) e Asia (1990). Logo bandas russas como “Aquarium” se viram apoiadas pelos mesmos que as perseguiam anteriormente.
Com a queda do muro de Berlim em 1989, o monopólio da gravadora estatal Melodyia foi quebrado e novas companhias independentes surgiram rapidamente, produzindo discos sobretudo de música ocidental. Era o fim do bloqueio cultural ao Ocidente que precedia o primeiro Monsters of Rock na região (com a participação de bandas como Metallica, AC/DC e Pantera em setembro de 1991, que contou com público de 1 milhão e 600 mil pessoas) e o fim da própria União Soviética, anunciado no Natal de 1991.
Na União Soviética, o rock’n’roll teve a função não apenas de mostrar que valores ocidentais como individualismo e liberdade eram bons, mas as práticas – capitalistas – que as pessoas utilizavam para obter a música ajudaram e muito a acabar com o apoio ao socialismo.