Em frente ao edifício da reitoria da Universidade de São Paulo, as pessoas se concentravam para a Assembleia Geral. No estacionamento, veículos de comunicação aguardavam os desdobramentos da noite, impedidos de avançar por militantes mascarados. Era novembro de 2011 e havia duas semanas que a greve dos professores, as manifestações na Paulista e a invasão da reitoria arrebataram as principais manchetes nacionais. Os estudantes se revoltavam contra o acordo firmado entre reitoria e Polícia Militar, que se tornaria responsável pelo policiamento da perigosa Cidade Universitária.
Aquele foi meu terceiro e mais difícil ano na graduação em História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Naquela altura, já eram evidentes as consequências relacionadas às minhas posturas políticas e acadêmicas. Fui escarnecido e quase reprovado ao fundamentar no conservador Edmund Burke minha dissertação sobre a Revolução Francesa. Minha negação em assinar um protesto contra a presença da PM no campus transformou, de imediato, alguns amigos em inimigos. Por pouco não apanhei de uma horda raivosa de feministas pacifistas quando, quase que por acidente, classifiquei como loucura a acusação, presente num coletivo, de que a disciplina História Industrial era burguesa e machista.
Cheguei muito próximo de meu limite. Estava eu errado em não me ajustar, ser tão diferente? Afinal, em meu currículo não constava um “professor doutor” antes do nome. Vivia a agonia do desajustado, do deslocado.
A Assembleia prosseguia quando, subitamente, fui tomado por um ímpeto que me levou à lista dos inscritos: o primeiro tema rejeitado por votação consistia em um convite de Heródoto Barbeiro para um breve debate televisivo. Não houve qualquer ponderação, apenas rejeição. Indignado, decidi retomar o convite e argumentar em seu favor. Tratava-se de um respeitado comunicador, além da oportunidade sem igual de estabelecer diálogo com o contribuinte que sustentava aquela insanidade.
À minha esquerda, a mesa organizadora anunciou minha participação. Diante de meus pés, uma multidão de dois mil alunos e docentes. Destinei os dois primeiros minutos à urgência em finalmente abandonar a torre de marfim acadêmica. Para mim, “era evidente e grave o descompasso acadêmico, em quase todas as suas expressões, com o resto do mundo. Se, afinal, tratava-se de um movimento legítimo, por que não dar a cara a tapa?”. Foi a última frase que completei antes de ser silenciado por coléricas vaias. Catedráticos, alguns dos quais meus professores, gritavam e urravam em consonância com a multidão. Diante de mim, a elite intelectual uspiana desmanchava-se raivosamente em uma pantomima simiesca.
A mesa organizadora, de má vontade e sem muito sucesso, pediu respeito e silêncio. Retomei a argumentação sem saber bem o porquê, talvez por inércia. Esforcei-me para concluir a proposta, mas fui histericamente interrompido por dois ou três indivíduos zurrando que ir aos estúdios televisivos era coadunar com o grande capital (não, não estou brincando). Em poucos instantes uma nova rodada de vaias foi iniciada. Devolvi educadamente o microfone aos organizadores, dei às costas e segui para o estacionamento apinhado de veículos de imprensa. O sorriso foi inevitável ao finalmente constatar que a USP estava perdida numa esquizofrenia utópica. Fui tomado pelo alívio compreensivo de que, de fato, aquele não era meu lugar. Percebi que o curso de história da USP não formava acadêmicos. Formava militantes.