Há uma terra de fartura, onde jorra leite e mel. Lá todos são igualmente fartos de todas suas necessidades, nenhuma vontade é frustrada pelas circunstâncias, por qualquer limite, e os unicórnios convivem entre nós. Há mesmo um lugar assim? Evidentemente, não. A Terra Prometida é incompatível tanto com a inevitável escassez frente a vontades velhas ou novas como com o conflito de volições individuais entre os homens.
A promessa de uma terra sem males, profecia tupi, encontra paralelo em quase todas as culturas. É natural esperar do céu o que o solo nega ou simplesmente limita. É natural esperar de Deus ou de outra força sobrenatural o que nosso semelhante não tem vontade ou poder para nos dar. Desejamos tanto um lugar assim que dele somos saudosos como se um dia tivesse existido. A nostalgia do paraíso é perene em nós. A história é um acidente, imprevisto e indesejado.
O advento do cristianismo, a partir da difusão do Evangelho, no século III, continha a promessa do Reino dos Céus, uma parusia, mais uma entre as muitas promessas de guias religiosos e livros de sabedoria, sagrados. Mas, ao contrário da raiz judaica, o messias Jesus não prometia o paraíso na terra, em vida, mas num Juízo Final, após a morte e apenas a poucos eleitos. Não era, portanto, uma proposta igualitarista nem de interrupção do curso da história para o parto de uma nova humanidade, pelo menos não através de uma revolução ou algo assim e não imediatamente.
O Império Romano, tomado pela nova fé, afunda sob o peso de sua gigantesca (para a época) e corrupta estrutura estatal. Mas a fé continua. Será ela a manter viva a chama da sociedade aberta, ideia grega em desenvolvimento havia alguns séculos. E a história segue seu curso. Irá dar na civilização dos povos germânicos, os bárbaros, e no fenômeno (séculos XV a XVIII) da apresentação do mundo ao mundo, a globalização permitida pelas grandes navegações.
O comércio, compatível com aquela fé nas palavras de seus guias privilegiados, como Luís de Molina e João Calvino, se espalha e faz a roda da história girar rápida e parecer ter uma direção. Mais: entrega uma fartura nunca antes vista, real, concreta, não mais um sonho, uma parusia (a segunda esperada vinda de Cristo).
Nem todos são satisfeitos, porém. E alguns o são, mas se ressentem de outros o serem ainda mais. Tomados pela vertigem de enxergar direção na história, fundam o moderno historicismo, baseado em velhos discursos religiosos. O ópio dos intelectuais consolida uma nova religião utópica, anticristã, ou tão cristã quanto, pois “cristo” é “salvador” em grego, ou seja, aquele que conduzirá todos à terra prometida.
A utopia, o paraíso possível, foi situado por Thomas Morus (que nunca saiu da Europa), veja só, na América do Sul. Aqui haveria a sociedade harmônica, sem conflitos, dos bens em comum, fartos e inesgotáveis. Na mesma época, Thomas Müntzer, baseado ainda na fé cristã original, lidera a Revolta dos Camponeses para trazer a utopia ao continente europeu. Para Müntzer, era apenas questão de eliminar os homens malvados, que ele via nos comerciantes e nos grandes proprietários. Reedição ainda, no caso, da velha lenda campesina romana (que dizia serem anjos de bondade infinita os pobres do campo).
A busca pela fartura igualitária, a proposta de parto de uma nova humanidade, formalmente vai deixando o campo religioso para tomar o político, um político de base religiosa, fundado em fenômenos de crença, não em avaliação e administração da realidade tal qual se apresenta.
De profeta em profeta, Marx, Lênin, Largo Caballero, Mussolini, Hitler, Che Guevara, Pol Pot, a nova fé “cristã” (salvacionista, redentora) encanta as multidões, converte os infiéis e toma, aqui e ali, o poder político, quando então não precisa mais converter ninguém, basta executar, queimar no fogo do inferno, os incrédulos, estes incômodos visionários da realidade econômica, do inevitável jogo das vontades humanas presente nas relações de reciprocidade.
O paraíso na terra, feito proposta política, onde quer que vença contrata o inferno. Diante de tantos horrores, o messianismo da nova religião reflui. Desmoralizado em sua origem europeia, busca os confins, especialmente a América do Sul idealizada por Thomas Morus, a terra da utopia por excelência literária.
Na “ilha Brasil”, correspondente à antiga lenda irlandesa utópica, novos profetas da “terra sem males” se apresentam, prometem leite, mel, fartura igualitária para todos, o céu na terra. Portadores da Revelação, não admitem oposição. Tomam de assalto boa parte das estruturas da velha fé cristã, fundindo duas parusias como se compatíveis fossem. E logo tomam o poder, eleitos pela esperança no resultado máximo coletivo com o esforço mínimo individual.
Flagrados no fracasso e na corrupção aos vícios que apontavam como males, negam-se a descer do pedestal da “verdade revelada”, negam-se a negar a utopia. É um vício arraigado, tão velho quanto a humanidade, tão fracassado quanto todas as tiranias que já governaram os homens de muitos tempos e lugares diversos. Apelando a lógicas dualistas infantis (nós x eles, céu x inferno, bem x mal), conclamam seus últimos fiéis a evitar o triunfo da racionalidade monista, pois, como dizia Heráclito, inspirador do Evangelho de Jesus, tudo é um, e a história segue seu curso, imprevisível e limitado pelos conflitos de volições e pela escassez frente às ilimitadas vontades humanas.
O vício da utopia está entre nós. Contra ele devemos ter fé e confiança no que é possível fazer e na beleza do comércio, este conquistador de farturas efetivas. Sem perder de vista que as utopias individuais, ao contrário das coletivas, são benfazejas. Em “O Evangelho Segundo a Filosofia”, lançado recentemente pela editora Record, analiso essas e outras questões, relacionando política, cristianismo e utopias. Não deixe de ler.