Quarta-feira, 31 de agosto de 2016. Um dia histórico para o Brasil. O Senado Federal aprova o impeachment de Dilma Rousseff por ter praticado crime de responsabilidade por meio de fraude fiscal. Um dia de felicidade para os defensores de um país com menos corrupção e menos gastos estatais desenfreados? Nem tanto.
Um gosto amargo ficou na boca com a votação. Não com o impeachment em si, obviamente. Mas com o golpe tramado contra a Constituição brasileira pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (aquele que responde a 12 inquéritos no STF, mas que não se tornou réu ainda), com a aprovação do presidente do STF, Ricardo Lewandowski. E com endereço certo: salvar os direitos políticos de Dilma Rousseff e abrir uma caixa de Pandora para fazer o mesmo com os próximos políticos a serem cassados, como deve acontecer com Eduardo Cunha.
Tudo começou quando, no início da sessão de julgamento, o líder do PT no Senado, Humberto Costa, apresentou um pedido de destaque à votação para dividi-la em duas: uma para julgar se a presidente cometeu crime de responsabilidade ou não, e por isso deveria sofrer o impeachment, e a segunda se deveria ter seus direitos políticos cassados ou não. A medida foi defendida pela sempre amiga de Dilma Rousseff, Katia Abreu (PMDB-TO), pelo ex-Ministro do Desenvolvimento do governo petista – tirado do cargo pelo afastamento da presidente do cargo – Armando Monteiro (PTB-PE), e pela eterna linha auxiliar do PT, o ex-PSOL, Randolfe Rodrigues (REDE-AP).
A medida foi duramente criticada por Fernando Collor (PTB-AL), que renunciou ao cargo de presidente em 29 de dezembro de 1992 e foi condenado à inelegibilidade – como manda a Constituição – por oito anos pelo Senado no dia seguinte. Collor argumentou que a separação entre as penas seria inconstitucional, na medida em que o artigo 52 da Constituição define claramente que a condenação de perda do cargo é cumulada com a inabilitação, por oito anos, para o exercício da função pública. Collor recorreu inclusive à jurisprudência do seu próprio processo de impeachment, quando o STF decidiu no Mandado de Segurança 21.689 que “No sistema atual, da Lei n.º 1.079, de 1950, não é possível a aplicação da pena de perda do cargo, apenas, nem a pena de inabilitação assume caráter de acessoriedade (…) A preposição ‘com’, utilizada no parágrafo único do art. 52, acima transcrito, ao contrário do conectivo ‘e’, do § 3º, do art. 33, da CF/1891, não autoriza a interpretação no sentido de que se tem, apenas, enumeração das penas que poderiam ser aplicadas. Implica, sim, a interpretação no sentido de que ambas as penas deverão ser aplicadas”. O Artigo 52 da Constituição foi bem destacado pela Caneta Desesquerdizadora:
Após a fala dos senadores contrários à medida inconstitucional, notadamente Aloysio Nunes (PSDB-SP), Fernando Collor (PTB-AL) e Ronaldo Caiado (DEM-GO), o presidente do STF e presidente da sessão de julgamento do impeachment, Ricardo Lewandowski, deferiu o pedido inconstitucional de dividir a votação, permitindo que os senadores legislassem ilegalmente – sem Projeto de Emenda à Constituição (PEC) e sem aprovação prévia em dois turnos pela Câmara dos Deputados – uma nova interpretação para a Constituição baseados num destaque petista à votação do impeachment. Para deferir o pedido, Lewandowski utilizou artigos extraídos do regimento interno do Senado e da Lei 1.079, mesmo sabendo que a Constituição se sobrepõe à legislação infraconstitucional. Estava preparado o picadeiro para o circo do golpe.
Dilma Rousseff, como previsto, foi considerada culpada por crime de responsabilidade e sofreu impeachment por 61 votos a favor e 20 contrários. Mas o golpe não estava aí, como insiste a esquerda acéfala. O golpe vinha a galope nos passos de Renan Calheiros pelo Senado Federal, especialmente quando subiu à mesa diretora e, com a Constituição Federal na mão (que irônico), se declarou contrário à inabilitação prevista na Constituição dos direitos políticos de Dilma Rousseff por oito anos. Era a senha para o PMDB do Senado e seus aliados deflagarem o golpe.
Os 42 votos a favor da inabilitação constitucional dos direitos políticos de Dilma Rousseff por oito anos não foram suficientes para aprovar a medida, que demandava 54 votos. 19 senadores que haviam votado a favor do impeachment “mudaram de ideia” e se tornaram golpistas, seja votando contra a Constituição, seja deixando de votar, sendo 12 deles do PMDB: Acir Gurgacz (PDT-RO), Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), Cidinho Santos (PR-MT), Cristovam Buarque (PPS-DF), Edison Lobão (PMDB-MA), Eduardo Braga (PMDB-AM), Eunício Oliveira (PMDB-CE), Hélio José (PMDB-DF), Jader Barbalho (PMDB-PA), João Alberto Souza (PMDB-MA), Maria do Carmo Alves (DEM-SE), Raimundo Lira (PMDB-PB), Renan Calheiros (PMDB-AL), Roberto Rocha (PSB-MA), Rose de Freitas (PMDB-ES), Telmário Mota (PDT-RR), Valdir Raupp (PMDB-RO), Vicentinho Alves (PR-TO) e Wellington Fagundes (PR-MT).
Jogando a Constituição brasileira na lata do lixo e para perplexidade de milhões de brasileiros, o Senado federal fatiou a pena de Dilma Rousseff, retirando-a do cargo de Presidente da República, mas mantendo seus direitos políticos até mesmo para se candidatar a um novo cargo nas eleições de 2018 – dado que há controvérsias se a Lei da Ficha Limpa seria aplicável neste caso. Estava dado o golpe.
Logicamente, o golpe não foi dado pensando apenas em Dilma. Com dezenas de políticos enrolados na Lava Jato, a manobra inconstitucional pode beneficiar quaisquer políticos que venham a ser cassados – uma fila encabeçada por Eduardo Cunha e que já deveria ter Renan Calheiros com senha na mão – mantendo seus direitos políticos e permitindo contestações à Lei da Ficha Limpa, duramente criticada por ministros do STF nas últimas semanas. Mesmo senadores do PSDB e do DEM, que após o golpe se pronunciaram dizendo que iriam recorrer ao STF contra a decisão, “mudaram de opinião” poucas horas após – depois que Michel Temer ligou para Aécio Neves (PSDB-MG) – e não há recurso contra a medida até o momento. O PT, por outro lado, já recorreu ao STF contra o impeachment de Dilma Rousseff.
Como mostra Josias de Souza, o golpe foi negociado em segredo por Renan Calheiros, Lula e demais aliados de Dilma Rousseff. Informado com antecedência, Ricardo Lewandowski estudou leis e regimentos para rebater as objeções e deferir o fatiamento inconstitucional da votação. As negociações se arrastaram por pelo menos duas semanas. O “tamo juntos” de Renan Calheiros a Michel Temer mostra que o novo presidente sabia de toda a articulação que culminou no golpe, como dois senadores do PMDB informaram posteriormente.
Como dizia um conhecido contador de fábulas, Karl Marx, “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. No caso brasileiro, o primeiro impeachment foi uma peça de tragédia grega com seu encerramento fatal (no caso, para Fernando Collor, não para o Brasil). E o segundo impeachment foi uma farsa onde a presidente foi democraticamente e constitucionalmente retirada de seu cargo para que a mesma Constituição fosse rasgada logo após, permitindo que Dilma possa continuar parasitando o dinheiro dos pagadores de impostos (e fique longe da cadeia), seja em alguma secretaria num governo estadual do PT (provavelmente, o Governo de Minas Gerais), seja numa nova eleição onde o discurso do “golpe” será novamente repetido à exaustão pela esquerda. Fora a imensa brecha aberta para que toda sorte de políticos corruptos possam ser cassados sem que isso afete significativamente suas carreiras políticas.
Sim, houve golpe. Não contra Dilma Rousseff, mas contra a Constituição e milhões de brasileiros que se tornaram espectadores de um circo armado pelos senadores para que Dilma, Cunha e demais políticos continuassem a rir.