Rousseau era um gênio. Vivendo no ápice do iluminismo francês, entre a Reforma e a Revolução Industrial, ele vislumbrou que havia demanda para um novo mito fundador do Ocidente e chamou pra si a tarefa de construir esse mito quase como uma nova religião secular fundada no racionalismo. No lugar do paraíso de Adão ele inseriu a figura do “bom selvagem”, afirmando que o homem, no estado da natureza, é bom e pacífico, sendo corrompido apenas pela civilização, denunciando a violência social nas leis, nos sistemas e na cultura de uma sociedade que ele considerava degradada. Evidentemente, ele próprio e os que o seguiam eram inocentes, agentes redentores de uma sociedade e de uma cultura injustas. E a origem de todas as injustiças seria a opressão da propriedade privada: “considerando a sociedade humana com visão tranquila e desinteressada, ela parece, a princípio, só mostrar a violência dos homens poderosos e a opressão dos fracos (…). O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer ‘isto é meu’ e encontrou pessoas bastante simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil (…)” (Discurso sobre a origem da desigualdade). Alguns anos depois, a visão de criancinhas trabalhando 14 horas em fábricas em Manchester parecia corroborar a ideia de uma sociedade depravada, corrompida e exploradora.
É possível dizer que foi Rousseau o fundador do estado de espírito de todas as esquerdas – ele só não menciona expressamente o “capitalismo” como o inimigo a ser combatido e derrotado porque a palavra ainda não existia em meados do século XVIII. Mas ele inseriu definitivamente o tema da desigualdade no debate político e filosófico, bem como inseminou a ideia de que o ser humano é perfectível, ou seja, pode superar-se a si mesmo em direção a restauração de um passado idílico num futuro paradisíaco, desde que libertado da opressão da propriedade privada e da exploração do homem pelo homem. A partir daí, uma multidão de psicopatas socialistas assumiu a missão de “melhorar” a humanidade, mesmo que pra isso tivesse que mandar milhões pra morte no forno, na câmara de gás, nos campos de concentração, nos paredões ou nos gulags.
O único problema é que esse passado nunca existiu, e esse futuro é pura miragem.
Aquelas criancinhas trabalhando em jornadas de 14 horas nas fábricas de Manchester simplesmente não teriam nascido 50 anos antes: não haveria comida para alimentá-las, e suas mães possivelmente não viveriam o bastante para pari-las. Por mais que as condições dos trabalhadores nos primórdios da Revolução Industrial parecessem tenebrosas, eram muito melhores do que aquelas de que dispunham seus avós e bisavós, cuja expectativa de vida não passava muito dos 35 anos em virtude da constante ameaça de guerra, doença e fome. Retrocedendo ainda mais, para um momento não só pré-capitalista mas também pré-civilizacional (antes que existisse uma “sociedade” que pudéssemos culpar pela degeneração humana), verificamos que as populações de agricultores do neolítico europeu eram não só extremamente belicosas, como perpetravam verdadeiros e numerosos massacres contra grupos de crianças e mulheres cujos restos foram encontrados empilhados em vários sítios espalhados pela Europa central e oriental.
Ainda mais eloquente é o exemplo dos índios ianomâmis. Vivendo numa sociedade sem propriedade e sem competição por terras ou recursos (se organizavam em pequenas tribos espalhadas por vastíssimas porções de terra), construíram uma cultura substancialmente estruturada em torno da guerra, com escaramuças constantes, captura de mulheres, expedições para destruição dos bens e da vida dos rivais e vinganças intermináveis.
A lição é clara: nunca existiu um passado feliz e puro antes da sociedade, nem nunca existirá um paraíso terrestre a ser implantado no futuro, quando progredirmos o bastante para sermos seres perfeitos. Essa mentira é a responsável pelos maiores genocídios da história: para o bem e para o mal, a humanidade é essa aí mesmo e não será “consertada” pela força de meia dúzia de mentes que se pensam acima da natureza e das circunstâncias.
Como afirmou J. P. Coutinho: “As ‘religiões seculares’ oferecem um sistema – ou, uma vez mais, uma vulgata, uma simplificação. O seu problema, porém, não está apenas nessa dimensão mimética; está na inevitabilidade de violência que contêm. Quando se promete tudo e mais um pouco, a ausência de resultados imediatos levará o agente político fideísta a tentar encontrar os obstáculos, humanos ou materiais, que impedem a conclusão da obra. O político utópico nunca questiona a bondade da sua utopia, muito menos a exequibilidade dela. Um dogma não se questiona; aplica-se. E, se o resultado não é o desejado, é necessário encontrar os inimigos – reais ou imaginários – que ardilosamente corrompem a máquina. A história do século XX é um cemitério eloquente desse tipo de paranoia”.