O tráfico e a milícia ocupam o vazio deixado pelo estado. Oferecem a “proteção” que o estado nega – e cobram caro por ela. Acabam por fazer reféns aqueles que têm o azar (ou a estupidez) de cair sob seu controle.
A “esquerda” brasileira (entre aspas porque se trata de uma esquerda bem específica) usa da mesma estratégia. Encontrou seus descamisados naqueles que se sentiam (ou efetivamente estavam) à margem das prioridades do poder: mulheres, negros, sem-terra, sem-teto, minorias sexuais. Cooptou essa massa de “excluídos” e se tornou seu cafetão. Sequestrou pautas e anseios mais que legítimos, e proclamou deter o monopólio das virtudes.
Só que não é preciso ser marxista para tomar partido contra o racismo, o preconceito, a violência doméstica, o assédio. Não é preciso ser marxista para ser contra a miséria e a injustiça. Não e preciso ser marxista para defender direitos iguais para todos, independentemente de gênero, origem étnica ou social, orientação sexual, credo, etc.
Os direitos humanos (direito à vida, à liberdade, à expressão, à dignidade, à presunção de inocência, à propriedade, a um julgamento justo, etc) não são reserva de mercado da “esquerda”. Ao contrário: onde ela se instala, alicia o legislativo, aparelha o judiciário e se apodera das instituições, aí é que tudo isso tende a ser desrespeitado.
E, no entanto, não se vê uma manifestação sequer relacionada a feminismo, racismo, direitos civis para LGBTs, descriminalização das drogas, estado laico, reformas (trabalhista, política, previdenciária), que não esteja sob a égide dos partidos ditos “progressistas”.
Até o adjetivo “progressista” foi confiscado – e logo por quem prima por ser a tropa de elite do atraso.
A “direita” também achou seu nicho com o mesmo mofado discurso da intolerância, do nacionalismo, da xenofobia.
E não é preciso ser conservador ou reacionário para clamar por mais segurança. Não é preciso ser um capitalista selvagem para acreditar que só a riqueza gera e distribui riqueza, que é o livre mercado que mais cria empregos (e eficiência, e oportunidades).
Não é preciso ser um brucutu de trabuco na mão para se opor à doutrinação nas escolas, à invasão de terras e edifícios, à depredação do patrimônio público, à deturpação do Bolsa-Família.
Essa “direita” e essa “esquerda” não se complementam: se excluem, se anulam.
Não dá para propor combate à fome e ser contra o agronegócio.
Dizer-se parte da luta democrática e pregar cerceamento à liberdade de expressão.
Falar em exorcizar a corrupção enquanto defende a volta do autoritarismo, quando é nos regimes autoritários que a corrupção melhor floresce.
Entre essa direita primitiva e essa esquerda velhaca, há espaço de sobra para a atuação dos liberais, dos democratas – que, no entanto, têm permanecido quase sem voz, receosos de ser confundidos com os “fascistas” de um lado, e envergonhados de apoiar causas “sociais” do outro.
Talvez devêssemos nos empenhar menos em desqualificar certos candidatos (“a Marina isso”, “o Joaquim aquilo”, o “Alckmin aquilo outro”, “ah, mas o Álvaro”, “o Amoedo, sei não”) e viabilizar alternativas descoladas do sectarismo, que nos permitam escapar da polarização “Lula (ou seu poste) x Bolsonaro”.
Correndo o risco de nos encaminhar, mais uma vez, para ter que escolher, dos extremos, o menos pior – sabendo que, nos extremos, não há menos pior. Só há traficantes e milicianos.