Em homenagem a Friedrich August von Hayek pela data de seu nascimento – 8 de maio de 1899 – o ILISP publica a entrevista do economista liberal e Prêmio Nobel de Economia feita por José Paulo Kupfer, na Veja, em 1979.
Muitos economistas, mais ou menos secretamente, podem pensar como ele. Outros recorrem a artifícios de linguagem e à sofisticação de conceitos para expor idéias muito parecidas com as suas. Mas pouquíssimos ousariam dizer as coisas que Friedrich August von Hayek diz de maneira tão clara, direta e chocante. E nenhum, seguramente, ostenta uma folha de serviços teóricos que se possa comparar com a sua em favor do livre mercado. Hayek defende a soberania do sistema de preços sobre qualquer forma de planejamento estatal da economia. Apesar de seus 80 anos, ele é incapaz de recusar, portanto, um convite para brandir argumentos contra o centralismo econômico – onde quer que seja.
Recentemente, Hayek deixou a pequena Freiburg, na Alemanha Ocidental, atravessou o Atlântico durante a noite e desembarcou em São Paulo no final da manhã. Logo depois do almoço, fez uma palestra que durou mais de três horas. Menos de 48 horas depois, como se fosse um jovem no pleno vigor da idade, ele partia para o Peru e de lá para o Japão – disposto a repetir sua eterna pregação: o planejamento governamental é uma forma disfarçada de socialismo, e o socialismo é o maior equívoco já produzido pelo homem. Prêmio Nobel de Economia em 1974, Hayek é um monumento do moderno pensamento liberal, tanto econômica como politicamente.
Nascido na Áustria, cidadão britânico e ex-professor do curso de economia da Universidade de Chicago, Hayek escreveu vários tratados de economia. Mas há três décadas se dedica à produção de estudos de filosofia política. Sua obra máxima – “The Constitution of Liberty” (A Constituição da Liberdade) – é pouco desconhecida no Brasil. De seus trabalhos, o mais conhecido é o “Caminho da Servidão”, de 1944.
Nesta entrevista, Hayek resume suas idéias econômicas e políticas.
VEJA – Na sua opinião, a chamada “democracia econômica” depende da democracia política e vice-versa?
HAYEK – Não. Democracia econômica é o tipo de conceito sem sentido. Democracia é um procedimento que permite que se adotem decisões políticas. Não há oportunidade ou justificativa para a democracia fora do campo político. Nesses termos, não conheço qualquer democracia perfeita, embora a Suíça e, em certa medida, a Alemanha Ocidental se aproximem de um sistema efetivamente democrático.
VEJA – E os Estados Unidos? Não entram nessa lista?
HAYEK – O sistema americano acabou reunindo o Executivo e o Legislativo num único corpo governamental. O assim chamado Legislativo americano, como ocorre em outros países, preocupa-se muito mais com os problemas governamentais e administrativos do que propriamente com questões legislativas. O princípio da separação dos poderes jamais alcançou um nível muito elevado. E, ainda que o sistema americano de checks and balances tenha sido uma tentativa de restringir a onipotência do assim chamado Legislativo, ele nunca atingiu aquilo que os pais da Constituição esperavam que atingisse.
VEJA – Como então deveriam funcionar os poderes do estado?
HAYEK – Nenhuma assembléia única ou autoridade deveria ter o poder de derrubar leis gerais e impor medidas governamentais. Na democracia que imagino, é preciso dividir o poder entre duas assembleias eleitas. Uma, a governamental, renovada em eleições freqüentes, de acordo com as linhas de partidos organizados. A outra, o verdadeiro Legislativo, formada por membros eleitos para mandatos de largos períodos, não reelegíveis, e naturalmente não submetidos à disciplina partidária.
VEJA – Quanto ao governo, quais seriam as suas funções?
HAYEK – Os governos deveriam se limitar a fazer cumprir as regras gerais de conduta individual, aplicando-as igualmente para todos. Além disso, seria função do governo oferecer determinados serviços públicos. Isso não quer dizer, porém, que possa dispor de poderes de coerção ou de monopólios. O que mais me preocupa em relação aos governos atuais é justamente esse poder de coerção e os monopólios estatais.
VEJA – Em termos econômicos, que tipo de problema isso acarreta?
HAYEK – Uma efetiva economia precisa ser orientada pelo sistema de preços. Os preços comunicam aos membros do mercado um número muito maior de informações do que qualquer um pode possuir. Nenhum governo pode corrigir ou orientar melhor a economia do que o sistema de livre mercado porque não consegue condensar todas as informações contidas nos preços. Por isso, toda interferência do governo nos preços ou nas quantidades produzidas – as duas variáveis que definem, em última instância, a chamada “intervenção estatal” – inevitavelmente reduz a eficiência da economia.
VEJA – O sistema de livre mercado não padece também de ineficiências?
HAYEK – Ele necessita de uma moldura legal apropriada para funcionar eficientemente. No presente, e verdade, não se pode dizer que essa moldura seja a mais adequada. Precisamos, por isso, trabalhar para aperfeiçoar as leis. Por exemplo, deve-se aplicar as corporações empresariais as normas que, lentamente, foram desenvolvidas para regular a conduta dos indivíduos. De todo modo, essa adaptação tem que ser lenta e gradual, orientada pela experiência, jamais através de reformas radicais.
VEJA – Se o livre mercado não conduz à ineficiência, como o senhor explica a crise de 1929?
HAYEK – Crises econômicas – e especialmente a de 1929 – não são causadas pelo mercado. Resultam de erros na política monetária.
VEJA – Seria esse o seu diagnóstico para os altos índices de inflação no mundo de hoje?
HAYEK – Exatamente. A inflação nada mais é do que um aumento exagerado na quantidade de dinheiro em circulação. Se o preço de um determinado bem aumenta, as pessoas gastarão mais para consumi-lo e, portanto, deixarão de comprar outros bens, cujos preços, teoricamente, deveriam cair. Os preços só não cairão se for emitido mais dinheiro para permitir que as pessoas continuem a comprar a mesma quantidade anterior de todos os bens.
VEJA – Como solucionar o problema da inflação?
HAYEK – Você quer saber qual é a saída política ou a saída inteligente? São questões diferentes. A tarefa da minha vida tem sido a de encontrar saídas políticas para as soluções que considero corretas, pois nem sempre as coisas coincidem. Naturalmente, é possível estancar a inflação cortando o excesso de dinheiro em circulação. Mas o preço é caro. A estabilização sempre leva a um período de desemprego agudo, a uma redução do nível geral de satisfação. Por isso, nenhum governo está disposto a enfrentar o problema com coragem. Afinal, seria difícil manter o poder. No fundo, não sou pessimista quanto ao futuro do mundo, mas sou extremamente pessimista quanto ao seu futuro imediato. Se os políticos atuais não conseguirem destruir o mundo nos próximos vinte anos, há uma nova geração com melhores idéias capaz de acertar os ponteiros.
VEJA – O desemprego é inevitável quando a inflação é alta?
HAYEK – Sem dúvida. O paradoxo é que, á curto prazo, a inflação reduz o desemprego. Mas, quando se utiliza a inflação como forma de reduzir o desemprego, acelera-se a própria inflação. No momento seguinte, quando se tenta controlar a inflação, o desemprego reaparece de forma ainda mais forte. Pois o que se fez, anteriormente, foi criar empregos temporários que só se sustentariam enquanto estivesse ocorrendo a aceleração inflacionária.
VEJA – Não haveria algum governo disposto a correr o risco do controle da inflação, já que o desemprego é inevitável?
HAYEK – Tenho muitas esperanças de que a primeira ministra Margaret Thatcher consiga êxito na sua política econômica na Inglaterra. Seria um importante exemplo para os demais países.
VEJA – A experiência inglesa de controle da inflação é mais importante do que, por exemplo, a chilena?
HAYEK – É claro que a Inglaterra tem um poder de repercussão muito maior do que o Chile. Além disso, no caso chileno, os aspectos tidos como socialmente injustos de sua experiência recente fazem com que seus resultados sejam menos convincentes.
VEJA – A economia mundial não está precisando de um novo Keynes?
HAYEK – Não, pelo amor de Deus! Keynes é amplamente responsável pelo que está acontecendo agora. Suas teorias, ao contrário do que se pensa, não contribuíram para a recuperação econômica depois de 1930. Serviram, isso sim, para desviar os recursos de suas corretas aplicações, causando o presente nível de desemprego e, antes disso, o surto inflacionário com o qual estamos convivendo. Para ser sincero, porém, estou sendo um pouco injusto com ele.
VEJA – Por quê?
HAYEK – Keynes foi um dos maiores combatentes contra a inflação e morreu no momento errado. Pouco antes, ele me disse, pessoalmente, que iria mudar o rumo de suas idéias. Alguns dos seus discípulos, muito mais keynesianos do que o próprio Keynes, é que confundiram as coisas e levaram o mundo a acreditar em teorias elaboradas para as necessidades políticas da Inglaterra, na época.
VEJA – O controle de preços não é uma arma eficaz no combate às altas taxas de inflação?
HAYEK – De forma alguma. Ninguém tem poderes para controlar os preços de maneira eficiente. Os preços são sinais sobre coisas que ainda não conhecemos. Não se pode, enfim, corrigir um sinal do qual não se sabe o que está assinalando. O controle de preços termina por desorientar a produção, conduz à escassez e esta ao planejamento central. O fim dessa linha é o socialismo, e o socialismo é um equívoco.
VEJA – É possível abolir as desigualdades sociais no sistema de livre mercado?
HAYEK – Não, porque um mercado efetivo determina preços e a remuneração de todos os serviços, no exato valor que lhes é dado pelas pessoas. As pessoas são muito diferentes em suas habilidades e oportunidades. Se tentarmos tratá-las com igualdade, o resultado para cada uma delas será desigual. Para fazê-las iguais – ou mais iguais -, no sentido material, precisaríamos tratá-las de modo desigual, o que significa, necessariamente, usar do arbítrio.
VEJA – O senhor é favorável a que se cobre um imposto sobre heranças?
HAYEK – Na Inglaterra, por exemplo, a herança é fortemente taxada. Isso destrói fortunas tradicionais de forma miserável. Os ricos não gostam de pagar imposto e preferem antes dá-lo a companhias de seguros do que entregá-lo ao governo. Além disso, esse imposto desestimula a acumulação de capital.
VEJA – Mas isso não contradiz a sua afirmação de que o sistema de livre mercado proporciona igualdade de oportunidades?
HAYEK – Não asseguro que as pessoas terão as mesmas oportunidades com a livre iniciativa. Na verdade, existem heranças mais importantes do que a material: inteligência, educação, etc. As pessoas não podem imaginar que se passarem parte de suas vidas pescando na beira do rio se transformarão em presidentes de grandes empresas. A ideia de que seja possível a distribuição de “pequenas igualdades” para todos é um non sense. Tentá-la é certeza de fracasso. Mais do que isso: a tentativa leva apenas a que se dê a alguns o que não se pode dar a outros. A capacidade pessoal e as oportunidades não são determinadas pela economia de mercado, mas sim pelo lugar onde acidentalmente nasceram ou pelos seus atributos físicos.
VEJA – As desigualdades sociais são, então, inevitáveis?
HAYEK – Eu penso que se trata de uma questão de possibilidades. Sociedades criativas podem assegurar um padrão mínimo a partir do qual todos pudessem ser capazes de ganhar mais. Isso, contudo, é tanto mais difícil quanto maior for o número de pessoas de tipos diferentes. Na Inglaterra e na Alemanha, talvez seja mais fácil alcançar esse nível mínimo do que, por exemplo, no Brasil. O fato é que não se pode – e nem se deve – assegurar aos esquimós ou aos índios da Amazônia as mesmas condições oferecidas nas cidades. Não teria sentido, por exemplo, conceder férias remuneradas aos esquimós, embora essa seja uma vantagem importante para os demais membros da sociedade moderna.
VEJA – Assim sendo, como o livre mercado poderia resolver os problemas das regiões subdesenvolvidas?
HAYEK – O desenvolvimento dessas regiões é uma questão de se descobrir oportunidades e habilidades, as quais são mais efetivamente alcançadas através da livre competição. Somente quando for dada às massas subdesenvolvidas oportunidade para que utilizem suas capacidades terão elas a possibilidade de deixar o estado de pobreza em que se encontram.
VEJA – Por que o senhor defende idéia de que cada empresa deveria emitir seu próprio dinheiro?
HAYEK – Já perdi as esperanças de que qualquer governo nos dê um dinheiro decente e de boa qualidade. Os governos emitem papel sem qualquer lastro e nos empurram uma moeda corrompida, inflacionada. Se é assim, por que os governos devem manter o monopólio da emissão? As empresas poderiam emitir e pôr em circulação unidades monetárias, procurando controlar a quantidade emitida. Com isso, garantiriam um valor no mínimo constante em relação às demais moedas oferecidas pelas instituições – ou governos – concorrentes.
VEJA – Mas não ocorreria, no caso, o fenômeno de a moeda boa ser expulsa do mercado pela moeda má?
HAYEK – Isso só se aplica no caso de moedas com taxa de troca fixa. O valor relativo das moedas competitivas privadas seria determinado pelo mercado. Ninguém poderia impor uma moeda inferior em substituição a outras mais valiosas.
VEJA – Seus colegas economistas não ficam perplexos diante da sua sugestão?
HAYEK – Os economistas, infelizmente, encaram a economia como uma ciência matemática ou física. Esquecem-se de que ela lida com fenômenos complexos. Em conseqüência, os rumos seguidos pela ciência econômica estão errados. A busca das comprovações matemáticas, econométricas e coisas do gênero não leva a nada. Esse é, inclusive, o engano do meu bom amigo Milton Friedman. Ele se prende às relações entre aumento de moeda em circulação e elevações de preços. Por não conseguir mensurar estatisticamente as mudanças nas estruturas de preços, nos preços relativos – que é o que importa -, simplesmente considera o fundamental como acessório. Pior, no entanto, é o caso de Wassily Leontief e os outros economistas que acreditam no planejamento econômico. É fantástico que alguém considere ser possível prever o que vai acontecer na economia melhor do que as informações contidas nos preços – ou seja, as informações condensadas das experiências de milhões e milhões de pessoas. Esses são tolos perigosos.